Pular para o conteúdo principal

Brasília? Itaipu? Não. SUS é a maior obra da história do Brasil

SAÚDE
TIPO DE GRAFIA
Para recobrar o ânimo, lembre-se que esta terra meio atrapalhada foi pioneira, entre países grandes, a transformar saúde em direito fundamental.

por Leandro Beguoci - BBC Brasil

Um dia, no começo dos anos 1990, minha mãe atendeu o telefone e soube que o irmão mais velho estava com o coração por um fio. O rosto da minha mãe congelou, e ficou assim por um tempo, numa expressão dura de impotência e tristeza. Meu tio não tinha convênio médico. 
Era uma situação tão difícil quanto previsível. No Jaraguá, bairro da periferia de São Paulo onde meu tio vivia, as pessoas morriam cedo. E não era só lá. Em Pirituba, onde meus avós e algumas tias moravam, a situação era a mesma.
Lembro bem das vizinhas que foram viúvas quase a vida inteira e das pessoas que tinham dois nomes – o segundo era uma homenagem a um irmão morto logo depois do parto. A morte estava por perto. Era só esperar um pouquinho que ela chegaria depois de uma gripe ou de uma festa de domingo.
Essas pessoas – pedreiros, eletricistas, donos de bar, sapateiros – não tinham renda o suficiente para bancar essa despesa nem um pedaço do Estado para pedir ajuda. Plano de saúde era coisa de funcionário público ou de região com muita fábrica, região desenvolvida, coisa do admirado ABC Paulista, onde vivia outra parte da família. Aquele pedaço industrial de São Paulo, na minha cabeça de criança, era intocado por velórios.
Para sorte da família do eixo Jaraguá-Pirituba, o Brasil criou o SUS (Sistema Único de Saúde) em 1988. Como lembra o doutor Drauzio Varella, "nós nos tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou oferecer saúde para todos".
Tivemos essa coragem nos anos 1980. Naqueles anos difíceis, uma série de heróis anônimos, de diferentes correntes políticas, criou um consenso. Não é uma questão de políticas do MDB ou da Arena, do PT, PSDB, PMDB ou DEM. O Brasil chegou à conclusão de que saúde era direito de todo mundo e de que aCONTA deveria ser rateada entre a população – tanto que colocou isso na Constituição.
Futuros engenheiros 
Foi uma das obras mais grandiosas da nossa história – maior do que Brasília, maior do que Itaipu. Essas obras são importantes, claro. Mas a existência do SUS permite que futuros engenheiros sobrevivam ao primeiro ano de vida.
Entre 1990 e 2015, o Brasil derrubou drasticamente a taxa de crianças que morrem com poucos anos de vida. Os médicos da família chegam a milhões de pessoas. A vacinação, o transplante de órgãos e o combate à Aids se transformaram em referências internacionais. Recentemente, foi uma médica do SUS quem descobriu a relação entre zika vírus e microcefalia.
O SUS também salvou algumas vidas familiares. Meu tio com o coração frágil, graças ao sistema público, está vivo e bem até hoje – apesar da sua situação ainda ser preocupante.
O SUS é inspirado nos sistemas de saúde dos países da Europa Ocidental, como o NHS (National Health System) inglês. Admirado e respeitado, foi até homenageado na abertura da Olimpíada de 2012, em Londres.
Para criar um sistema assim, é preciso que o país, em algum momento da sua história, tenha chegado a uma conclusão: saúde não é apenas responsabilidade individual. É direito das pessoas e, portanto, obrigação do Estado.
Parece um jogo de conceitos, mas não é. Nos EUA, sempre foi muito difícil criar um sistema público de saúde. Para muita gente, é uma interferência enorme do governo na vida das pessoas e esse problema é mais bem resolvido por operadoras privadas de saúde, com incentivos para competir e oferecer melhores serviços.
Isso tem consequências. As pessoas têm acesso a muitos medicamentos e tratamentos modernos nos EUA. Ao mesmo tempo, têmCONTAS gigantescas para pagar e muitas famílias quebram – ou não tem acesso a serviços básicos. Na Europa ocidental, o tratamento é publico e gratuito. Pode ser mais demorado, nem sempre é de ponta, mas ninguém precisa se preocupar com contas milionárias.
Claro, há uma enorme zona cinza entre esses dois pontos, e é muito raro encontrar um país que seja apenas público ou apenas privado. Há variações sobre o tamanho do Estado tanto em investimento quanto em regulação – afinal, o que você vai fazer caso seu plano não te atenda? Não importa o modelo. Ele sempre pede escolhas, e elas não são fáceis. Não tem exatamente certo ou errado. Tem o que funciona e o que não funciona para cada país, de acordo com as escolhas que cada um faz em determinado momento da sua história.
Deficiências
O SUS é um avanço gigantesco, mas é impossível ignorar os casos de corrupção, o descaso com hospitais e postos de saúde, além da demora de meses para agendar consultas em muitos Estados e municípios. Na média, ainda temos menos médicos a disposição das pessoas do que a média dos países mais desenvolvidos do mundo – e ainda temos de ver Estados, como o Rio de Janeiro, em situação de calamidade. 
Até a médica que descobriu o elo entre zika e microcefalia, na Paraíba, vive longe do paraíso – ela precisa de muito maisDINHEIRO para tocar suas pesquisas.
O complexo sistema de financiamento do SUS, dividido entre União, Estados e municípios, não ajuda. Muitos governadores e prefeitos não investem o mínimo necessário para o sistema funcionar. Na prática, os gastos de todos os governos com saúde não chegam a 4% do PIB. É pouco.
Se somarmos todos os gastos com saúde no Brasil, o setor privado é responsável por 60% dele. Os outros 40% são de dinheiro público. Porém, o setor privado atende apenas 25% das pessoas. A maior parte dos brasileiros depende de um dinheiro escasso, picotado e, muitas vezes, mal administrado.
Para piorar, o setor privado está longe da sua melhor forma. Mesmo os brasileiros que podem pagar não estão seguros. As reclamações são gigantescas. Dados recentes revelam que cerca de 100 mil pessoas fizeram queixas formais dos serviços dos convênios em um ano. 
Além disso, em muitos casos o setor privado repassa aCONTA ao governo. Os planos usam brechas jurídicas para mandar seus consumidores ao SUS, economizando alguns milhões em repasses a médicos e hospitais. Além da canibalização de recursos escassos, há uma malandragem desagradável. 
A conta do SUS é difícil. Afinal,DINHEIRO público não é dinheiro gratuito – ele vem dos nossos impostos e das nossas escolhas. Saúde é uma questão de vida e morte – e mesmo o melhor plano não garante um tratamento caríssimo de câncer. Não há um consenso de que só Estado ou só o mercado possam resolver o problema. Saúde é um desafio gigantesco, concreto e imediato. Mas é uma questão que vale a pena encarar.
Nesse Brasil polarizado, muitas vezes em torno de questões vazias, é sempre bom lembrar dos tios que foram salvos pelo SUS e de quantos mais poderiam ter sido salvos, se o sistema fosse melhor. 
Temos de ter orgulho das coisas que dão certo e espírito crítico para resolver, sem histeria, os nossos problemas. Um SUS poderoso não é bom apenas para quem usa o sistema público – ele também obriga o setor privado a puxar sua régua lá pra cima
Fonte: Carta Maior
Publicado em 01/02/2016

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CONVOCATÓRIA 1ª REUNIÃO ORDINÁRIA CISTT NATAL/RN      O Conselho Municipal de Saúde de Natal através da Comissão Intersetorial em Saúde do Trabalhador - CIST, no uso de suas atribuições definidas em legislação vigente, e considerando a Resolução Nº 493, de 7 de novembro de 2013, que define entre os objetivos e finalidades da CISTT,   acompanhar e fiscalizar os serviços e as ações realizadas pelos CEREST, observando seus planos de trabalho, e acompanhar o controle permanente da aplicação dos recursos, as atividades de vigilância em saúde, até a avaliaç...
"Precisamos tirar o foco do mosquito e centrar nas condições e situações que levam a ter criadouros" “Guerra ao mosquito”. Nas últimas semanas, as manchetes sobre a epidemia do zika vírus, transmitido pelo  Aedes aegypti , abusaram da expressão e repercutiram à exaustão a declaração do ministro da Saúde, Marcelo Castro, de que o país vem perdendo feio a “batalha”. O titular da pasta, a presidente Dilma Rousseff e outras autoridades vêm reforçando a mensagem de que a população brasileira precisa se unir no “combate” para sair vitoriosa. A novidade da transmissão do zika no Brasil pelo mesmo mosquito que já transmitia dengue e chikungunya, acrescida da tragédia dos milhares de casos suspeitos de microcefalia em bebês parece não ter sido suficiente para que o governo brasileiro repensasse a estratégia de combate que vem sendo adotada, sem sucesso, há 40 anos para o combate ao Aedes aegypti. É o que alerta a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) como resultado do ...
PORTARIA Nº 498/2014, 11 DE DEZEMBRO DE 2014. O SECRETÁRIO MUNICIPAL DE SAÚDE, no uso de suas atribuições legais conferidas pelo artigo 5º, XIV L da Lei Complementar Nº 020, de 02 de março de 1999, Ofício nº 4765/2014-GS/SMS, e considerando: A Portaria Nº 197/2005 que trata da Criação dos Conselhos Locais de Saúde; As deliberações das Conferências Municipais de Saúde sobre a Criação de Conselhos Locais de Saúde; As deliberações da 11ª reunião ordinária do Conselho Municipal de Saúde de Natal em 2013 que deliberou pela reativação dos Conselhos Locais de saúde A necessidade de avançar no processo de democratização do setor saúde; A necessidade de normatização do processo eletivo dos representantes dos profissionais e da população no conselho local das unidades de saúde e dos distritos sanitários; A importância e a necessidade de aprofundamento do controle social e da participação social, nas diversas instâncias do SUS. RESOLVE: Art. 1º. Reativar os Conselhos Locais das U...