Uma utopia possível: o SUS Brasil*
23 de outubro de 2014
Por Gastão Wagner de Sousa Campos**
Advogo que o SUS ainda necessita
de uma ampla reforma administrativa e organizacional, e que, portanto, as
inovações contidas na Lei Orgânica da Saúde e em leis e decretos posteriores
não foram suficientes para proteger o SUS do caráter clientelista, privatista e
ineficiente do Estado brasileiro.
Uma diferença radical na
organização do SUS em relação aos sistemas públicos foi o grau de
descentralização adotado no país. Aqui optamos por considerar o município como
núcleo básico organizacional do sistema. O funcionamento sistêmico seria
garantido pela atuação integradora das secretarias de estado e pelo ministério
da Saúde. O resultado desta opção gerou efeitos paradoxais: tanto propiciando a
existência de experiências exitosas em municípios com contexto favorável, o que
serviu como efeito demonstração de que o modelo SUS era possível e efetivo,
quanto também instalando uma fragmentação do sistema já que cada município tem
autonomia para definir sua própria política de gestão e de atenção à saúde.
Essa construção municipal do SUS tem gerado iniquidade, desigualdade e
comprometido a sustentabilidade do SUS como um todo e mesmo das redes locais
(Mendes, 2013).
A essa forma de fragmentação
decorrente da dificuldade de integração em rede das políticas, programas e
serviços federal, estaduais e municipais, somou-se ainda uma antiga
fragmentação típica da tradicional saúde pública brasileira, que atuava com
programas focais, voltados cada um para um tipo de risco ou de enfermidade e
que foi ampliada ao longo da existência do SUS.
Ao SUS restou o desafio de compor
um sistema com milhares de modos de governar em cada local e estado e ainda
tentar compor isso com duas centenas de programas sanitários que funcionam com
regras e padrões de financiamento e de prestação de contas diferentes.
Formava-se uma nova Torre de Babel. Quem, que organismo, que gestor, que
conselho teria governabilidade para unificar esses pedaços do Estado com grande
grau de autonomia de planejamento, de tomada de decisão e de gestão tão
ampliado?
Funcionamento sistêmico depende
de coordenação e de forte interligação entre os pontos da rede. No caso,
integração entre os vários sistemas municipais de saúde, programas e redes de
atenção diferentes e desconectadas e inventadas por cada novo governante em
exercício. Isto sem contar a tradição brasileira, típica dos países em que a
atenção à saúde é regulada pelo mercado, de funcionamento isolado entre os milhares
de serviços e equipes de saúde. O papel de coordenação e de unificação desse
mosaico caberia ao Ministério da Saúde e às Secretarias de Saúde.
Essa doutrina, na prática, não
vem produzindo efeitos suficientes para uma adequada governança do SUS. Isto
apesar do SUS, para integrar entes federados autônomos — União, estados e
cidades — em um sistema único, tenha criado arranjos organizacionais inovadores
para a secular tradição dos serviços públicos brasileiros.
Ressalta-se a invenção de novos
mecanismos de cogestão entre estes entes federados: a gestão colegiada, que deu
origem a Comissão Tripartite de âmbito nacional, as Comissões Bipartites com
governabilidade sobre projetos em cada estado e, mais recentemente, as
Comissões Regionais de Saúde, que reúnem todos os dirigentes municipais de uma
macrorregião com delegados do governo estadual. Apesar da criação desses
espaços de deliberação participativa, observou-se uma tendência do Ministério
da Saúde e secretarias de estado em utilizar mecanismos de repasse financeiro
para induzir a adesão dos municípios a determinados programas e prioridades. É
ainda muito recente a tentativa de introduzir-se a metodologia dos contratos ou
de pactos de gestão entre os entes federados. Apesar destes esforços, contudo,
a integração sistêmica ainda é baixa no Brasil.
Agravou ainda mais a fragmentação
do SUS e, portanto, a baixa governança, a privatização direta ou indireta da
gestão de serviços e de redes municipais, apresentada como solução conservadora
e liberal, supostamente potente para resolver os impasses da administração
pública. Com isto, criaram-se dentro de um mesmo território municipal agentes
gestores com importante grau de poder e autonomia para definir estratégias de
cuidado, política de pessoal, entre outros aspectos. Vale ressaltar que desde a
constituição do SUS, ao contrário do que ocorreu na implementação de outros
sistemas nacionais de saúde, optou-se como compra de serviços a hospitais e
ambulatórios privados e filantrópicos, sob os quais os gestores têm baixa
capacidade de controle e quase nenhuma governabilidade. Em decorrência, ao
longo de toda a história do SUS não se conseguiu integrar estes serviços
conveniados e contratados à rede de saúde e tampouco foi possível que adotassem
normas e práticas recomendadas pelo sistema.
Bem, com todo esse processo de
fragmentação, de privatização e de descentralização comprometeu-se o
funcionamento sistêmico e integrado da política de saúde.
O processo de municipalização na
saúde foi competitivo e não solidário (Mendes, 2013). O SUS, hoje, é um mercado
imperfeito, um mosaico ingovernável em que mais de oito mil agentes de produção
em saúde, com diferentes modalidades organizacionais —secretarias municipais,
estaduais, redes e programas do MS, milhares de organizações sociais, hospitais
universitários, privados e filantrópicos –, com autonomia relativa para definir
suas prioridades, modelos de atenção e de gestão, política de pessoal –, operam
com baixo grau de planejamento, com subfinanciamento, sobreposição de papéis e
de responsabilidade, compondo um caos de governança impossível.
Duas das consequências nefastas
desse processo de fragmentação foram a precariedade das políticas de pessoal e
a inadequação das estratégias de gestão no SUS.
A fragmentação não é a única
causa para a péssima gestão, nem para a péssima política de pessoal do SUS,
entretanto, neste caos, diluiu-se a responsabilidade de estados e da União,
delegando-se aos municípios tarefas impossíveis de serem levadas a cabo ao
nível local e de maneira isolada. Produziu-se com isto uma cultura da
improvisação, de precariedade e de maltrato em relação aos profissionais de
saúde e ao cuidado dos usuários. Infelizmente, esse padrão de simplificação, de
estratégia da precariedade, estendeu-se também para infraestrutura,
equipamentos e modelo de atenção e de cuidado. Gostaria de indicar algumas
estratégias para o SUS Brasil para concretizar esse debate em caminhos
concretos: uma utopia possível?
O SUS Brasil deveria superar a
fragmentação, a privatização, a inadequação da política de pessoal tendo como
núcleo organizacional as Regiões de Saúde.
Constituir o SUS Brasil: uma
autarquia especial integrada pelo Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da
Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. Todos os serviços de saúde de caráter
público, bem como contratos e convênios de todos os entes federados passariam a
esta autarquia especial. Constituir a autarquia com modelo organizacional e de
gestão próprio e específico conforme as singularidades e características da
área da saúde.
O SUS Brasil seria organizado por
Regiões de Saúde. As regiões de Saúde fariam a gestão de uma rede de atenção
integral à saúde. Todos os serviços públicos teriam um modelo organizacional
autárquico, que valeria para atenção básica, redes de atenção, organizações
sociais, fundações privadas, etc. O fim da privatização e a invenção de um novo
modelo público de organização e de gestão!
Todos os profissionais de saúde
que trabalharem no SUS passariam à gestão da autarquia especial por dois caminhos:
optariam livremente por integrar as novas carreiras do SUS Brasil ou seriam
cedidos por municípios, estados, universidades para o efetivo exercício no SUS
Brasil. Seriam criadas carreiras profissionais para o SUS Brasil. Carreiras
multiprofissionais organizadas pelas grandes áreas de cuidado do SUS: atenção
básica, vigilância à saúde, urgência e emergência, atenção hospitalar e
especializada e outros agregados a serem definidos. O ingresso seria por
concurso por estado da federação (ou talvez por Região de Saúde?), havendo
possibilidade de progresso por mérito e mobilidade antes de novos concursos. Os
servidores já concursados por entes públicos poderiam optar para ingressar na
nova carreira como quadro em extinção.
Para evitar a burocratização e
limitar o predomínio de interesses privados no SUS Brasil seria ampliado e
valorizado o sistema de cogestão e de gestão participativa. O Conselho Nacional
de Saúde e Comissão Tripartite fariam o planejamento e gestão do SUS Brasil,
valendose de gestores do MS, SES [secretarias de estado de Saúde] e SMS
[secretarias municipais de Saúde]. O mesmo modelo seria adotado nos estados e
nas regiões de saúde.
Ainda para diminuir a
interferência política partidária no SUS Brasil, todos os cargos de gestão de
serviços e de programas deixariam de ser de livre provimento pelo Poder
Executivo e passariam a depender de seleção interna oferecida aos profissionais
do SUS Brasil, mediante processo de seleção pública.
Seria criada a autoridade sanitária e corpo técnico
para as Regiões de Saúde. O Secretário Regional de Saúde seria indicado pelo
Conselho Regional de Saúde, obedecidos a prérequisitos técnicos, sanitário e a
capacidade de gestão dos candidatos.
Tudo isto para garantir devida atenção
em saúde aos brasileiros, ampliando o financiamento para 8% do PIB, a ser gasto
em investimento prioritário para a expansão da Atenção Básica para 80 a 90% dos
brasileiros.
Garantir equipe básica de
qualidade com médico, enfermeiro e apoio matricial multiprofissional para o
conjunto dos brasileiros.
A atenção básica não se destina
somente a populações pobres, trata-se de uma estratégia para resolver 80% dos
problemas de saúde mediante cuidado personalizado e que implique abordagem
clínica e preventiva. Para isso será necessário melhorar a qualidade da atenção
básica: melhor infraestrutura e integração com hospitais e serviços
especializados. Ampliar a liberdade das famílias, garantindo-lhes a
possibilidade de escolher a qual equipe se vincular em uma dada região.
Estima-se a necessidade de 200
novos hospitais gerais em regiões carentes. Para construí-los e equipá-los
serão necessários R$ 10 bilhões, o custeio anual exigirá orçamento semelhante.
A recuperação e reorganização da precária da rede já existente custarão outros
R$ 20 bilhões anuais. Haveria ainda que se ampliar o gasto com a vigilância em
saúde, controlar epidemias, drogas, violência. Para isso, outros R$ 5
bilhões/ano. Enfim, vamos tornar possível a utopia do SUS Brasil!
** Professor titular de
Saúde Coletiva da FCM/Unicamp. Texto adaptado pela Radis do documento Algumas
hipóteses desesperadas e uma utopia possível: o SUS Brasil
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