Governo 'mente'
sobre zika e pode protagonizar 'escândalo global', diz professor da USP
Para Chiavegatto, ainda não é possível ter certeza de que vírus seja
causa de microcefalia
Aumento de casos de microcefalia no
Nordeste, onde epidemia foi forte, não é suficiente para provar relação, diz
professorReprodução/BBC
Professor da USP diz que não há pesquisas e evidências suficientes para
mostrar relação entre zika e microcefalia
Apesar de o ministro da Saúde, Marcelo Castro, dizer que não há mais
dúvidas de que o zika causa microcefalia em recém-nascidos, há quem questione a
afirmação e critique o tom de certeza do governo. Ele falou ao jornal Folha de
s. Paulo.
— É questão superada. A causa da epidemia de microcefalia é o vírus
Zika. O que não tem resposta ainda é se o vírus é causa suficiente para
provocar microcefalia ou se precisa de alguns fatores contribuintes.
Para o professor de epidemiologia da USP, Alexandre Chiavegatto, porém,
qualquer cientista que analisar com rigor as evidências que vêm sendo
enumeradas pelo ministro para provar essa relação causal se dará conta de que
elas são insuficientes.
— Se formos analisar isso com rigor científico, o governo está chutando,
tem quase que um palpite de que o Zika causa microcefalia. E o problema é que
se estiver errado poderá ser responsabilizado pelas consequências do pânico que
causou. Seria o maior escândalo global da área de saúde dos últimos anos. Tema
de tese, de livro.
O professor da USP faz a ressalva de que não está dizendo que o vírus
Zika não causa microcefalia.
— É possível que sim. Hoje, se eu tivesse de apostar, ainda colocaria
minhas fichas na existência dessa relação (de causa), mas ciência não é aposta
e temos de admitir que estão surgindo evidências que mostram que precisamos de
mais pesquisas.
No momento, a comunidade científica parece estar dividida sobre o tema.
Parte diz acreditar que os estudos são suficientes para fazer essa
relação causal entre zika e microcefalia.
Entre as pesquisas citadas por essa
parcela estão um trabalho publicado no mês passado na revista científicaThe New England Journal of Medicine , que relatou o caso
de uma jovem da Eslovênia, infectada por zika em Natal (RN), no primeiro
trimestre da gestação.
O estudo está sendo considerado o mais completo já realizado por contar
com imagens do feto, análises patológicas do cérebro danificado pelo vírus e o
sequenciamento completo do vírus da zika encontrado nas estruturas cerebrais do
bebê.
Aumento de casos de microcefalia no Nordeste, onde epidemia de zika foi
forte, não é suficiente para provar relação, diz professor
O infectologista Esper Kallas, também
professor da USP, falou à Folha.
— Para mim, é evidência definitiva. Não se fala em outra coisa entre os
cientistas.
Críticos
Do outro lado, porém, também vem crescendo o número de cientistas que,
como Chiavegatto, pedem mais estudos para que seja estabelecida uma relação
causal.
A diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Margaret Chan,
por exemplo, parece ter endossado esse coro na semana passada, defendendo que
deve ser uma prioridade o investimento em estudos sobre a associação da
infecção com a anomalia neurológica.
— É preciso chegar a fundo dessa questão que é inusitada. Vejo que
estudos (sobre a associação do vírus da zika com a microcefalia) estão sendo
feitos no Brasil e em outros países e eles são muito importantes", afirmou
Margaret à imprensa durante uma visita a um hospital no Recife.
Em dezembro, um comunicado da organização reconheceu pela primeira vez
oficialmente a relação entre o zika e os casos de microcefalia ao mencionar um
estudo brasileiro do Instituto Evandro Chagas, que revelou a presença do vírus em
um bebê microcéfalo.
O especialista da OMS Marcos Espinal, diretor do departamento de doenças
comunicáveis da Organização Pan-Americana de Saúde, explicou n aépoca à BBC.
— Há uma conexão entre as duas coisas, mas causalidade é uma outra
história. Não podemos dizer 100% que é só o zika vírus a causa da microcefalia,
ela pode ser atribuída a diversas questões. Há uma conexão porque há um
evidente aumento nos casos de microcefalia no Brasil ao mesmo tempo em que há
um surto de zika no país.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a relação entre o vírus Zika e
os casos de microcefalia "foi confirmada após analise de exame realizado
em um bebê, nascido no Ceará, com microcefalia e outras malformações
congênitas". De acordo com o ministério, a análise foi feita em amostras
de sangue e tecidos, onde foi identificada a presença do vírus Zika pelo
Instituto Evandro Chagas, órgão do ministério em Belém (PA).
— A partir desse achado do bebê que veio a óbito, o Ministério da Saúde
considerou confirmada a relação entre o vírus e a ocorrência de microcefalia.
Essa é uma situação inédita na pesquisa científica mundial.
Professor da USP diz que governo tem 'palpite' que vírus causa
microcefalia e evidências não são suficientes
No informe, o órgão diz que a relação foi reforçada por outros fatos,
como resultados positivos em amostras no líquido amniótico de gestantes cujos
bebês apresentaram microcefalia, no sangue e tecidos de crianças com
microcefalia e no tecido de fetos e placenta após aborto.
Casos no Nordeste
O ministério da Saúde também costuma apontar como evidência de que o
Zika possa causar microcefalia o fato da região Nordeste, bastante afetada pelo
vírus, também ter registrado um grande número de casos da malformação fetal. O
ministro falou à imprensa.
— No início de 2015, tivemos epidemia de zika no Nordeste. Nove meses
depois, uma epidemia de microcefalia. Onde? Exatamente no Nordeste.
Epidemiologicamente está estabelecida a relação.
Segundo Chiavegatto, pelos estudos feitos até agora, por enquanto
sabemos, basicamente, que foi encontrado o vírus Zika no cérebro de bebês com
microcefalia e que o Zika pode passar para a placenta da mãe e líquido
amniótico. Para o professor da USP, porém, esses dados são inconclusivos.
Como alguns cientistas dessa linha mais cética costumam explicar, tais
estudos mostram que o Zika estava no local do crime, mas não que cometeu o
assassinato.
Entre as evidências mencionadas por Chiavegatto que ainda precisam ser
explicadas está o fato de a Colômbia ter registrado mais 7 mil grávidas com
zika e, por enquanto, apenas um caso de microcefalia que poderia ser associada
à doença.
— Mas é claro que também é possível que os casos de microcefalia estejam
apenas começando a aparecer por lá, porque a epidemia de zika chegou mais tarde
na Colômbia. Os dados colombianos também precisam ser tratados com rigor e
precisamos estar abertos a todas as possibilidades.
Outra questão que ainda precisaria de resposta, segundo ele, seria o
caso do Sergipe.
Segundo uma reportagem publicada pelo
jornal O Estado de S. Paulo no domingo, o menor
Estado da Federação tem, proporcionalmente a sua população, o maior número de
casos registrados de microcefalia do país (192), mas nenhum caso confirmado de
infecção por vírus Zika.
Subnotificação
Alguns cientistas também questionam a possibilidade de se tirar qualquer
conclusão com base nas estatísticas do governo para microcefalia, que para eles
seriam falhas.
Diretora-geral da OMS, Margareth Chan, diz que relação entre zika e
microcefalia ainda não está clara.
Dois estudos publicados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e feitos
na Paraíba e em Pernambuco sugerem que havia uma subnotificação de casos de
microcefalia antes da epidemia de zika. Ou seja, menos casos eram informados às
autoridades. O número oficial, geralmente usado na comparação, é de 150 casos
por ano na fase pré-zika.
Um desses estudos, por exemplo, avaliou bases de dados oficiais com
informações de mais de 100 mil bebês nascidos na Paraíba e concluiu que até 8%
das crianças registradas entre 2012 e 2015 se encaixavam nos critérios de
diagnóstico de microcefalia. Chiavegatto ressaltou.
— Acho que o governo tem medo de errar, de voltar atrás. Então em vez de
admitir o erro sobre a certeza (da relação causal entre zika e microcefalia)
resolveu dobrar a aposta. Está causando alarde com a desculpa de que o
alarmismo ajuda a prevenção – e acho que, de fato, ajuda. Mas gerar pânico com
uma mentira também pode ter um custo bastante elevado.
O professor cita os bilhões de reais supostamente perdidos no Brasil e
demais países atingidos com a queda no turismo. Também os casos de grávidas
que, após pegarem zika, resolveram abortar em diversos países. "Imagine só
como vai ficar a cabeça dessas mulheres mais para frente se ficar provado que a
relação não era tão direta, por exemplo, que havia mais fatores envolvidos, ou
que a relação causal não existia" afirma ele.
— Por isso é essencial que a comunicação com a população seja feita de
forma cuidadosa e bastante franca.
Segundo o último balanço do Ministério da Saúde, já são 583 casos
confirmados de bebês com microcefalia ou alterações no sistema nervoso central
em 16 Estados do país.
O Ministério da Saúde diz que está "se aprofundando na análise dos
casos, além de acompanhar outras análises que vem sendo conduzidas pelos seus
órgãos de pesquisa e análise laboratorial". Em nota o ministério se
pronunciou
— O Governo Federal e representantes do Centro de Prevenção e Controle
de Doenças (CDC, na sigla em ingês), dos Estados Unidos, estão trabalhando em
conjunto na análises desses materiais. O CDC é referência para a OMS em doenças
transmissíveis.
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